ROBINSON CRUSOÉ NO PORTO - um poema de Jorge Gomes Miranda

Que resultados posso apresentar
de uma longa permanência na ilha desconhecida,
onde vivi com parcos haveres,
distante do escorbuto dos falsos afectos
e do tufão familiar que naufraga desejos e sonhos?
O que poderá ser motivo de curiosidade
nas redacções dos jornais
e tema de conversa nos cafés?
Esperam acaso que carregue comigo o fantasma
de um desastre?
Regressei com cicatrizes, a boca a saber a frutos.
Tudo mudado e com amarras.
E ainda que não seja fácil encontrar agora os sítios da infância,
em breve o verão colocará na paisagem campos de milho,
silvas, carros de rolamentos e ratoeiras;
crianças a prepararem-se para solilóquios em grupo,
a voz aclarada com os primeiros cigarros,
revistas de mão em mão, o negro
segredo nas últimas filas do cinema.
Do mal, então já entrevisto, e das súbitas crueldades,
não é preciso falar.
Seus rebentos e esbirros andam por aí à vista de todos,
rindo muito alto e ao princípio da noite televisionados.
O Caçador de Tempestades, Ed. & etc, Lisboa, 2004.