29 agosto 2006

NA MORTE DE MARILYN - um poema de Ruy Belo



Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sózinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sózinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentia toda sózinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só esatender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou



Marilyn Monroe morreu em Agosto de 1962.

http://www.blogatelas.blogspot.com
(das últimas fotos)

07 agosto 2006

MIRAMAR



Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efémera combustão.


Inês Lourenço

(Teoria da Imunidade,1996)

05 agosto 2006

"LÚGUBRE"

Verdadeiramente lúgubre e tendenciosa, a múltiplos níveis, a Crónica de ontem no "Público", de VPV, escriba que citei e elogiei, no meu post anterior, a propósito do insolúvel conflito Islão/Ocidente.

A falta de referência à realidade cubana, antes de Fidel, não será o menor dos tendenciosismos. Aliás a pirueta repete-se no resto dos "argumentos" clássicos (URSS, Mao, Che, etc), sem nunca aludir aos contextos anteriores, feudais, coloniais e sub-humanos, em que viviam esses povos. As tiranias e misérias vieram todas depois...

Mas o mais triste são os seus sarcasmos andropáusicos, a respeito do "lúgubre casal" -Sartre e Beauvoir - que nunca foram "um casal", como ele sabe, mais o desafecto pouco compreensível
, e a espécie de repelência, por "heróis românticos" e "anos sessenta".

Toda a gente sabe que os heróis vivem de equívocos -próprios e alheios -; e que as comunidades vivem de anseios e esperanças inatingíveis. E isso também é a REALIDADE.

Se assim não fosse, a vida seria incomparavelmente mais "lúgubre".

Trate-se, caro cronista.
Essa depressão, faz-lhe mal!