11 março 2007

Carlos Bessa - DEZANOVE MANEIRAS DE FAZER A MESMA PERGUNTA





SAÍDAS PROFISSIONAIS

De repente, sem pose nem porquê,

desata a escrever como um vidente,

como um Rimbaud. Ele, o revoltado,

que publicará não tarda três ou quatro

poemas numa dessas revistas que

ninguém e que o tempo tornará

raridade, se contiver nomes que

sonem, que façam a alegria de

alfarrábios e coleccionistas.

Mas por ora é apenas silêncio,

sufoco. Ninguém lhe diz nada, nem mesmo

os amigos mais chegados. E como

ainda não sabe que a literatura

é sempre essa alquimia de esperar,

vai-se esquecendo. O ritmo é outro.

Não o dos versos. Mas o da carreira.

Tornar-se-á um gestor de primeira e

acabará os dias rico e feliz,

a dizer aos netos que a poesia é

uma mentira e que ele teve sorte,

abriu os olhos a tempo.

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Carlos Bessa, DEZANOVE MANEIRAS DE FAZER A MESMA PERGUNTA, ed. Teatro de Vila Real, 2007

10 março 2007

Feliz Aniversário, para a outra minha Sofia!






OS SOLISTAS


Cintilam suspensos dos dedos
os archeiros do som, enviados
do pulso e do sopro
aos caminhos invioláveis. Vão
no poder volátil dos ares,
orfeus absortos, apolos migrantes,
rosto de lebre possuída
pelo genocídio dos instantes.





I. L., Os Solistas, Limiar, Porto, 1994

(livro dedicado aos meus filhos, Sofia e Nuno)

foto do CD: José Manuel Teixeira da Silva

08 março 2007

Eva/Mona Lisa (intermezzo)


A garganta de frutos fadados
nos cabos de sombra
da maga ciência,
cruzadas as mãos
a augurar quebranto
no terror deleitoso da treva
da boca, no manto dos olhos
fendido o nome
a invocar o viço
e o tempo da fouce.
I. L.
Retinografias, 1986
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Nota: Hoje, 8 de Março, para todas as mulheres da Terra, mesmo que não saibam ou não possam ler.

01 março 2007

A minha "Sophia"




"País da imanência sem mácula".

Sophia tem uma face "oficial", bem domada, de luminosidade prêt-à-porter. Muito "menina do mar", muito de aparência "inspirada" e macia. Nada de Kaos nem do implacável Kronos. Irrita tanto retardamento, que, quando ela partiu, redobrou ad nauseam os seus estereótipos para "consumismos" auto-convencidos.
Até já tenho ouvido alguns "noventinhas" e outras entidades igualmente "lúcidas" acharem que a sua poesia não é suficientemente "dark"...ou...?

Sophia e Jorge de Sena são sem sombra de dúvida dois génios do século XX, apesar das infames perseguições
pidescas, que até a sua correspondência violaram, segundo assinala o volume da ed. Guerra e Paz, Lisboa, 2006, a que se refere o meu anterior post.
Basta ler essa correspondência, de muito antes do 25 de Abril, para nos surpreendermos e maravilharmos com sínteses e presciências, que muita da contemporaneidade nacional não entende, nem merece. Aí não há desculpas interpretativas, nas "ambiguidades poéticas", para os e as consumidoras básicas do marzinho - onde, imagine-se (!) acontecem quase todos os naufrágios.