27 junho 2006

ROBINSON CRUSOÉ NO PORTO - um poema de Jorge Gomes Miranda



Que resultados posso apresentar
de uma longa permanência na ilha desconhecida,
onde vivi com parcos haveres,
distante do escorbuto dos falsos afectos
e do tufão familiar que naufraga desejos e sonhos?
O que poderá ser motivo de curiosidade
nas redacções dos jornais
e tema de conversa nos cafés?
Esperam acaso que carregue comigo o fantasma
de um desastre?
Regressei com cicatrizes, a boca a saber a frutos.
Tudo mudado e com amarras.
E ainda que não seja fácil encontrar agora os sítios da infância,
em breve o verão colocará na paisagem campos de milho,
silvas, carros de rolamentos e ratoeiras;
crianças a prepararem-se para solilóquios em grupo,
a voz aclarada com os primeiros cigarros,
revistas de mão em mão, o negro
segredo nas últimas filas do cinema.
Do mal, então já entrevisto, e das súbitas crueldades,
não é preciso falar.
Seus rebentos e esbirros andam por aí à vista de todos,
rindo muito alto e ao princípio da noite televisionados.


O Caçador de Tempestades, Ed. & etc, Lisboa, 2004.

23 junho 2006

QUADRAS POPULARES SANJOANINAS de autor incerto.


Agora deito balões;
Criança deitava estrelas,
Sempre atrás das ilusões,
Sempre à espera de perdê-las.

A roda do nosso abraço
Tem um sentido profundo:
Quanto mais se aperta o laço,
Tanto mais se alarga o Mundo.

Sou do vira e tu da valsa,
Não queiras dar-me ilusões.
Mais vale dançar descalça
Do que tombar dos tacões.

Este trevo tem o travo
De um amor já esquecido,
Que foi à sorte arrancado
P'ra ser da sorte perdido.

Às fontinhas do teu peito
Mandei beber meu olhar;
Afinal só trouxe o jeito
Da minha sede aumentar!

Milagre de S.João
Diz o povo, à boca cheia.
Virou em bombo, o canhão,
E o poleiro em colmeia.

Farto de ser solteirinho,
O martelinho amigou-se.
Já ninguém o vê sózinho
Anda agora preso à fouce.

S. João p'ra ver as moças
Fez uma fonte de prata.
As moças não foram vê-lo,
S. João chora que se mata!



Porto, Nortugal, s/d.

18 junho 2006

F I A M A


NATUREZA MORTA COM LOUVADEUS

Foi o último hóspede a sentar-se

no topo da mesa, já depois do martírio.

As asas magníficas haviam-lhe sido quebradas

por algum vento. Perdera o rumo

sobre a película cintilante de água

no riacho parado. Tal como poisou

junto de nós, com o belo corpo magro

arquejante, lembrava, ainda segundo o

seu nome,

um santo mártir. Enquanto meditávamos,

a morte sobreveio, e a pequena criatura,

que viera partilhar a nossa mesa,

depois de ter sido banida das águas

foi banida da terra. Alguém pegou

no volúvel, alado corpo morto

abandonado sem nexo na brancura da toalha

- que maculava -

e o atirou para qualquer arbusto raro

que o poeta ainda pôde fotografar.

Fiama Hasse Pais Brandão

(este poema foi publicado inédito, no n.º 2 de Hífen - Cadernos de Poesia - abril- setembro -1988)

Em carta que me enviou, após a recepção da ed. citada, Fiama fez gentis e inesquecíveis votos para que a revista "durasse o tempo da poesia: muito e não muito."

12 junho 2006

EUGÉNIO citado de cor.



No prato da balança um verso basta
para pesar no outro a minha vida.

Eugénio de Andrade

(19-1-1923, Póvoa da Atalaia, Fundão;
13-6-2005, Porto.)

11 junho 2006

http://blogatelas.blogspot.com - Feérico e glorioso contraponto aos meus disfóricos "Particípios Passados".


Esplendorosa colecção de promotoras de cabeças perdidas! Outros perderam os cabelos (e a força incomum) caso de Sansão; ou então perderam a inconsciência vegetal e quase bovina, do Éden (caso do servil Adão) e outros a alma (caso do velho Fausto).
Embora o "score" continue muito desiquilibrado: Quantas Desdémonas, Carmens, Buterfly, por excedem...
Com pedido de desculpas para nnannarella, que nos oferece este "ensemble" pictórico (e superlativo) de Salomés, Judites, Herodíades, etc, não resisti a copiar este maravilhoso Tiziano Salomè con la testa del Batista.

Ponho aqui, como penhor sem valia, um poema escrito sobre a influência da audição da ópera SALOMÉ de Richard Strauss (não confundir com os das valsas), cujo libreto é uma tradução da peça homónima de Oscar Wilde (escrita primitivamente em Francês). Na ópera, musicalmente poderosa e avassaladora, Salomé repete inúmeras vezes a Jokanaan, que a repudia como se do próprio Satanás se tratasse:
I will kiss thy mouth!

Nota: Há edição portuguesa da peça e o Cd com a ópera, em boa edição e com bons intérpretes, também se encontra em qualquer Fnac.

I WIL KISS THY MOUTH


Do fundo da cisterna
a tua voz eleva-se e nenhuma
masmorra abafa este ardor
por ela aceso, no derradeiro véu,
a minha pele. Nem as proféticas
maldições, nem o teu repúdio,
nem a luxúria do tetrarca
me impedem de cumprir
o mandamento primeiro
da paixão: a colheita
da tua face.


I. L. (A enganosa respiração da manhã, Asa editores, 2002)



P. S. - Depois desta exultação jubilatória, temos a Terrinha banal e pífia à nossa espera, com uma costumeira voz masaculina aos berros, lá pelo 3.º esquerdo. Telefonamos para a esquadra e metemo-nos num grande sarilho?
Não será que o valentão dos berros e etc e a sua presa, ainda nos vão retaliar?

06 junho 2006

Um poema de "BEAU SÉJOUR" - um dos meus livros preferidos, de Manuel de Freitas.


BAILE DE FINALISTAS

Não é uma história bonita, edificante,
essas coisas. Já conhecia a morte,
mas nunca lhe tinha tocado.
A Ribeira de Santarém, em 1988.
Posso contar? Convidou-me
para que a acompanhasse ao seu baile
de finalistas. Só muito a custo acedi,
de casaco e sorriso emprestados.

Na mesa mais discreta - depois
de muito vinho, alguns whiskies -
os dedos encaminhavam-se
para o centro exacto do pavor
e do desejo. Encontrava a morte,
debaixo daquele vestido azul
(desculpa, talvez não fosse azul).

Pensaria, se pensar me fosse possível,
que a lucidez só podia ser aquilo:
estar inteiro, feroz, consciente
onde dizem que se ganha o esquecimento,
por alguns segundos. Bebia cada vez mais,
sem saber como sentir o que não sentia.
O salão enchia-se e eu nem reparava,
a música, atroz, passava-me ao lado.

Ela despediu-se, nem sequer
para sempre ou até ao fim
ou qualquer outro dos títulos
do romancista português
que mais lia. E eu fiquei; aquele
inferno provinciano adequava-se
inesperadamente bem ao cheiro
inédito da morte. Bebi com
os que sobravam, na sala de bilhar.
Já não sei os nomes. Calava,
dentro de mim um cântico final.

Dormi na estação. Talvez agora
não me ficasse grande o casaco preto,
mas deixou de me apetecer usá-lo.
Que será feito do teu corpo, do vestido
azul que quase rasguei, da morte
que gentilmente me trouxeste?


Manuel de Freitas, Beau Séjour, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003.

01 junho 2006

PARTICÍPIOS PASSADOS


Será que "Elas" têm direito ao particípio passado?
Será que sempre serão "as mortas" e nunca ou quase nunca, as "matadoras"? Questão gramatical..., apenas!

PORQUÊ?

Vem isto a propósito de uma mãe e filha assassinadas barbaramente, a semana passada (Público, 27 de Maio de 2006) pelo ex-marido da filha.
Portugal está na lista das Organizações Internacinais de Direitos Humanos por estas vergonhosas e repelentes práticas de assassínio em esposas, companheiras ou ex-esposas.
Bem sei que este assunto não é "glamouroso", nem dá "pica" para discussões literárias, estéticas ou políticas. Mas, só o ano passado, foram. deste modo, nesta "nação valente, imortal", assassinadas 25 mulheres... Não foram 25 deputados, nem 25 comentadores políticos. Foram umas desvalidas " fêmeas" portugas.

Que interessante seria ver os/as bloguistas "notáveis"da blogosfera lusa, deterem-se sobre este assunto...