Correspondência Sophia/Sena (1959-1978)
Granja, 18 de Novembro de 1972
Caríssimo Jorge,
Estou aqui por uns dias "em frente ao mar enorme" em casa da minha filha Isabel, casa onde eu própria vivi dos 11 aos 18 anos (no Verão) e onde agora tudo me corta aos bocados. A minha mãe está e não está em cada lugar - é qualquer coisa que em mim se liga ao motivo da morte de Isolda. às vezes abre-se uma janela e o mar é um instante o mesmo. Pensei que viesses a Lisboa - tive pena de não te ver.
Comecei e quase acabei várias cartas em que te agradecia os teus dois livros.
Das traduções gostei sobretudo das traduções de poesia medieval francesa. "Ainda é viva a ratazana" e outras são insuperáveis. Da renascença gostei menos porque os poetas da renascença traduzidos ficam quase todos o mesmo. E discordei da escolha das poesias gregas, escolha onde faltavam os meus poemas essenciais, Aliás as escolhas e a tradução são sempre infinitamente discutíveis. Gostei muito de muitas das tuas traduções - mas por mim só creio na tradução obcecadamente literal. Quando leio Homero ou Platão quero traduções tal e qual. E, quando alguém me traduz, as diversões e derivações de tradutores, por mais brilhantes que sejam, arrepiam-me sempre.. Quero traduções mas que deixem em branco o vazio entre duas línguas.
No Exorcismo gostei da violência e amargura. O que me tocou foi a frontalidade do "amargor", um desespero denso que dá aos poemas um peso duro de pedra. É uma voz rouca e surda que responde a outra voz:
Não mais Musa não mais que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida
Destempero e rouquidão são o que no teu livro me parece mais justo, belo e teu - Mas não concordo com aquilo a que chamas "chamar as coisas pelo seu nome". Pois não é o seu nome mas só a linguagem inventada pelas sinistras e raivosas frustações do machismo.
A civilização ocidental traiu a imanência. Talvez esta traição tenha começado em Sócrates e Platão que a beberam na "Sabedoria da Ásia". O ser deixou de estar na phisis e passou a estar no logos . A gente da Índia quis sempre passar para o outro lado da natureza. A phisis era ilusão e aparência para o homem indiano -o que veio labirinticamente de Platão para o cristianismo. E começou a transcendência. A fidelidade à imanência tornou-se pecado. O homem deixou de ser um com o seu corpo, e com a mulher. As palavras que significavam sexo transformaram-se em palavrões - não significam sexo, mas não-identificação do ser como sexo. Significam divórcio. Usá-las é aceitar esse divórcio.
Creio que estamos no Kaos. Talvez seja um princípio. Ao princípio era o Kaos. Através do Kaos reconhecemos a phisis copmo ser.. Reconhecemos o país da imanência sem mácula.
(...)
Sophia
os pedaços - espero que siga. Com as minhas saudades para ti e para a Mécia
(...)Sophia
Correspondência de Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena (1959-1978), Edit. Guerra e Paz, Lisboa, 2006