Dueto poético de José Miguel Silva e Manuel de Freitas, na viragem do ano
WHAT USE?
A poesia, que foi tudo, é quase nada,
se não cura, não faz pão, não tira nódoas
do tecido social. Em vez de versos,
ponho ao sol um vaso de ervas aromáticas,
fomento a couve-roxa, conto as flores
do manacá e atormento-me em janelas
virtuais, avaliando os elementos
da ruína, seus engodos e motivos.
Atormento-me de novo, com os roubos
do momento, disparato, não respiro,
assobio uma canção desencontrada,
popular, o coração impaciente.
E cedo volto, sem prazer, ao passatempo
destes jogos cranianos - escusados,
se não creio que a justiça leia versos
nem me abrigo na menória de vindouros.
J. M. S.
NO WAY BACK
"Como sair daqui?" Perguntas bem, amigo.
Diógenes diria "à catanada, vivamente",
Lichtenberg "à gargalhada", se o conheço.
Thomas Bernhard proporia "num rectângulo
de tábuas" e Machado que o caminho de saída
se descobre ao caminhar. Beckett é provável
que dissesse "rastejando".
Diderot aventaria
"pela rua do liceu", Tcheckov "pela viela
mais escura, à tua esquerda". Séneca diria,
muito sonso, "pelo passeio das Virtudes",
Vaneigem "pelo jardim das Belas-Artes".
Bashô responderia (e eu com ele) "é muito cedo,
fica mais um pouco, ainda há vinho na garrafa".
J. M. S.
QUERELLE
Não tenho para ser sincero,
muita simpatia por aquele rapaz
de óculos escuros que roubava livros
em Santarém. Rapou o cabelo,
decorou páginas inteiras de Genet,
sem que nada percebesse do amor.
E, no entanto, é ele que me pede agora
contas da vida que não vivi - esse
náufrago de espelhos abolidos e
de noites sem saída. Esse rosto imberbe
que finjo reconhecer ao longe.
Talvez lhe pudesse simplesmente
dizer: ao menos não engordei,
cretino, e escrevi mais poemas
do que tu alguma vez sonhaste.
Mas ele riposta, impecável:
não te voltarão a chamar rapaz.
Deves-me todos os poemas que escreveste.
M. F.
VICTIMES OF THE DANCE
Era antes da Internet: um recanto
do Blitz onde se expunham ou partilhavam
(des)prazeres, um improvisado conjunto
de referências que nos pudesse
aproximar de alguém,
nem que fosse de nós próprios.
Estávamos, como sempre, demasiado sós,
entregues a províncias e desgostos
incomuns, mesmo quando batiam certo
os nomes, os sinais de alarme que
- entre ninguém e ninguém -
desbravavam uma espécie de caminho.
Conheci, em suma, dezenas de pessoas.
Às cartas seguia-se fatalmente o rosto,
surpresa por vezes dolorosa (outras vezes não).
Ninguém, de qualquer modo, queria ser ninguém.
Antes presentes ou futuros poetas, romancistas,
compositores, artistas plásticos, timoneiros.
Se nenhum deles, a acreditar no Google, deixou cadastro
cultural foi porque a vida, ou nem sequer a vida,
sabotou as adolescências de que fui breve testemunha.
E não ignoro que este vestígio incerto vale menos
do que o silêncio com que me escreviam
há quase vinte anos. Quando não havia e-mail.
M. F.
SILVA,José Miguel/FREITAS,Manuel de,Walkmen,& etc,Lisboa,Dezembro de 2007(pág.7, 8, 9 e 27)
A poesia, que foi tudo, é quase nada,
se não cura, não faz pão, não tira nódoas
do tecido social. Em vez de versos,
ponho ao sol um vaso de ervas aromáticas,
fomento a couve-roxa, conto as flores
do manacá e atormento-me em janelas
virtuais, avaliando os elementos
da ruína, seus engodos e motivos.
Atormento-me de novo, com os roubos
do momento, disparato, não respiro,
assobio uma canção desencontrada,
popular, o coração impaciente.
E cedo volto, sem prazer, ao passatempo
destes jogos cranianos - escusados,
se não creio que a justiça leia versos
nem me abrigo na menória de vindouros.
J. M. S.
NO WAY BACK
"Como sair daqui?" Perguntas bem, amigo.
Diógenes diria "à catanada, vivamente",
Lichtenberg "à gargalhada", se o conheço.
Thomas Bernhard proporia "num rectângulo
de tábuas" e Machado que o caminho de saída
se descobre ao caminhar. Beckett é provável
que dissesse "rastejando".
Diderot aventaria
"pela rua do liceu", Tcheckov "pela viela
mais escura, à tua esquerda". Séneca diria,
muito sonso, "pelo passeio das Virtudes",
Vaneigem "pelo jardim das Belas-Artes".
Bashô responderia (e eu com ele) "é muito cedo,
fica mais um pouco, ainda há vinho na garrafa".
J. M. S.
QUERELLE
Não tenho para ser sincero,
muita simpatia por aquele rapaz
de óculos escuros que roubava livros
em Santarém. Rapou o cabelo,
decorou páginas inteiras de Genet,
sem que nada percebesse do amor.
E, no entanto, é ele que me pede agora
contas da vida que não vivi - esse
náufrago de espelhos abolidos e
de noites sem saída. Esse rosto imberbe
que finjo reconhecer ao longe.
Talvez lhe pudesse simplesmente
dizer: ao menos não engordei,
cretino, e escrevi mais poemas
do que tu alguma vez sonhaste.
Mas ele riposta, impecável:
não te voltarão a chamar rapaz.
Deves-me todos os poemas que escreveste.
M. F.
VICTIMES OF THE DANCE
Era antes da Internet: um recanto
do Blitz onde se expunham ou partilhavam
(des)prazeres, um improvisado conjunto
de referências que nos pudesse
aproximar de alguém,
nem que fosse de nós próprios.
Estávamos, como sempre, demasiado sós,
entregues a províncias e desgostos
incomuns, mesmo quando batiam certo
os nomes, os sinais de alarme que
- entre ninguém e ninguém -
desbravavam uma espécie de caminho.
Conheci, em suma, dezenas de pessoas.
Às cartas seguia-se fatalmente o rosto,
surpresa por vezes dolorosa (outras vezes não).
Ninguém, de qualquer modo, queria ser ninguém.
Antes presentes ou futuros poetas, romancistas,
compositores, artistas plásticos, timoneiros.
Se nenhum deles, a acreditar no Google, deixou cadastro
cultural foi porque a vida, ou nem sequer a vida,
sabotou as adolescências de que fui breve testemunha.
E não ignoro que este vestígio incerto vale menos
do que o silêncio com que me escreviam
há quase vinte anos. Quando não havia e-mail.
M. F.
SILVA,José Miguel/FREITAS,Manuel de,Walkmen,& etc,Lisboa,Dezembro de 2007(pág.7, 8, 9 e 27)